domingo, 28 de agosto de 2011

A fuga

Já não sentia os espinhos arranhando a pele, nem o medo das surpresas que aquele ambiente escuro e fechado pelas folhas causaria a qualquer pessoa. Apenas caminhava, deixando levar-se pela sagacidade limitada do instinto. As mãos estavam geladas, os braços doíam, e a dificuldade em respirar fazia com que o desejo de abrir os olhos fosse preocupação secundária. Avistou um toco encostado no aconchego de uma árvore e pressentiu, guiado pela esperança de continuar em vida, que a fuga estava prestes a encontrar o seu desfecho.
Sentou-se, a cabeça encostada no tronco, as mãos descansando no colo e a retomada do ar que saía e entrava, agitado. Pensou, por um momento, que ali seria o seu último descanso. As baforadas ficaram mais brandas e o desejo da morte soprava em seus ouvidos, chamando-o, como uma puta satisfeita no raro prazer do sexo que acenava, no leito impreciso da flora, para aquele que fora o autor de suas alegrias libidinosas. Abriu os olhos e avistou, com certa dificuldade, um amontoado de madeiras visivelmente modificadas pelas mãos de um homem.
Haveria alguém por perto que lhe pudesse doar abrigo? Seria a sua casa quente, com uma lareira no meio da sala e as crianças se preparando para dormir, tomando o leite esquentado pela mãe?
Não sabia ao certo se eram reais ou apenas imagens que os seus olhos criavam como uma forma de acalmar o seu momento de morte. Forçou as pernas para se levantar num movimento inútil, agarrou-se ao tronco e percebeu que as forças já haviam se despedido sem avisar. Soltou um gemido que mal passou pela traquéia, numa tentativa insólita de se animar, da mesma forma que fazia quando os dias tediosos cercavam o seu corpo naquela cela emporcalhada pela lambança dos ratos. Fechou novamente os olhos e vagou pelo passado.
Pensava no calor da praia, no sol veraneio que banhava a vida simples do seu antigo vilarejo no litoral. As mulheres lavando a roupa no domingo de manhã, às vezes, lhe causavam certo espanto. Sabiam de tudo e até teorizavam sobre algumas normas comportamentais. Os homens chegando de tardezinha à espera de sossego, os filhos, unidos pelo pudor da infância, moldando os castelos de areia com o cuidado de um artesão. À noite, numa única praça que faltava luz, o namoro às escondidas, guardado pelo sorriso perolado da lua.
Abrira mão daquilo tudo por uma bobagem, uma briga sem sentido que acabara em morte. Fora apenas um soco, assim como aqueles do tempo da escola, e tudo viera abaixo. O corpo negro despencava como se fosse pedra mole e logo o barulho das sirenes ressoavam aos ouvidos que mal acreditavam naquilo tudo. “Homicídio Doloso”, fora o que ouviu de um dos policiais. Seu rosto estava pálido e as pessoas lançavam injúrias em direção a ele, apontavam o dedo e berravam fazendo caras feias. Fora colocado, a empurrões e pontapés, dentro de um camburão velho e não se ouvira mais notícias suas. A mãe se mudara para o Norte, junto com um comerciante. O pai morrera e o irmão montara uma loja de materiais de pintura no interior de São Paulo, por meio da qual se mantinha vivo.
Fora preciso alguns anos para se acostumar ao presídio. Logo, fizera contatos, localizara alguns homens que se mostraram amigos e que estavam na mesma situação: sobrevivendo no mundo dos tortos, dos desalinhados, desprovidos de uma segunda chance.
Abriu novamente os olhos e viu algumas pontas de luz balançando e desarrumando a imagem embaçada do escuro. Seria Deus, juntando as partículas iluminadas do seu Ser e esperando que a hora chegasse, e assim carregar nos ombros aquele corpo cansado e arranhado pelos arrependimentos e também pelos espinhos? As pupilas insistiam em cobrir os olhos e a resistência em se manter acordado parecia ter sumido completamente, até que tudo ficou escuro.
Quando acordou, estava em uma cama coberta de um branco que nunca havia visto antes. Pensou, sem poder se mover um centímetro sequer, que – talvez – os seus pecados haviam sido, enfim, perdoados.

domingo, 7 de agosto de 2011

A chuva

Embora tivesse cessado a chuva, o asfalto ainda estava molhado e as pessoas se mantinham quietas no silêncio caseiro, guardado pelas paredes de suas casas populares. Sozinho, ele andava em passadas tensas, enquanto a imagem trazida pelas lembranças era refletida nos olhos meio perdidos.
Os cabelos acompanhando o vento, o colo moreno, as unhas feitas com o cuidado de artista. Havia um tempo em que não prestava tanta a atenção nos detalhes. Tinha na memória apenas a imagem do quarto, a cama vazia, e quando ela chegava cansada do trabalho, se olhavam e se abraçavam num ânimo que se confundia, ora com o amor, ora com o afeto.
Ela reclamava dos seus olhos distantes, da sua insegurança, da sua maneira desleixada de se vestir. Ele rebatia com discursos, mas não adiantava. Ambos sentiam que o muro entre os dois já fora construído e sua dureza ainda se mantinha intacta. Mesmo assim insistia, comprava presentes, acordava cedo e fazia, antes que ela acordasse, o café da manhã. Ela agradecia com um beijo tímido, um abraço amigo e desentendido do verdadeiro motivo daquele gesto. Segurando-a pela cintura, ainda tentava animá-la, deslizando os lábios pelo pescoço, da forma como ela sempre o elogiava. Mas o calor amante do abraço, aos poucos, ia se esvaindo, o corpo se contraía e as mãos escorregavam decepcionadas pelo quadril.
Era uma situação dentro da qual tinha se acomodado. A normalidade dos fatos começava a prendê-lo em casa, e passava o dia sentado na poltrona grande, no meio da sala. Os programas de TV vieram a ser a sua diversão diária. Não havia mais poesia no final do dia, nem as conversas que atravessavam o silêncio do quarto, e nem a vontade de se olharem no escuro, na hora de dormir.
Antes, achava que era culpa do tempo, do costume, da inevitabilidade dos amantes em se tornarem irmãos, do desejo que se despede anunciando a convivência como uma possível substituta. Mas naquela noite, pisando no asfalto úmido, pensou que a culpa era mesmo dele. Poderia ter prestado mais atenção naquele jeito silencioso de dizer as coisas, que era só dela. Poderia ter olhado mais a fundo, sem a orientação do orgulho, e ver o verdadeiro sentido daquela angústia manifestada em gestos. Haveria tempo de mudar as coisas? Pensou.
Num ímpeto, voltou-se para o gato sentado em uma esquina pouco iluminada. Sentiu que o gato queria lhe dizer algo, mas não podia, havia limitações. Compreendeu aquele olhar felino como queria, e começou a caminhar um pouco mais depressa. Entrou no prédio, pegou o elevador, chegou num apartamento que ficava quase no final do corredor, tocou a campainha.
Ela abriu a porta surpresa, sorriu um sorriso sem graça e se esforçou para que ele não olhasse para o interior do apartamento. Sem que quisesse, os seus olhos foram puxados pela curiosidade da saudade. Queria saber o que tinha mudado no apartamento durante o tempo em que a distância das palavras os mantiveram separados. Olhou disfarçadamente: havia outro. Ela pediu para que ele passasse mais tarde, ele consentiu com a cabeça, sem dizer uma palavra. Ela fechou a porta enquanto o acompanhava descendo as escadas. Sentindo o dia mais pesado, ele foi embora. Chegou em casa, abriu um álbum velho de fotografias e ficou olhando o passado como quem vê um filme, até que veio, de novo, a chuva, lavando o asfalto que mal havia secado.