terça-feira, 17 de abril de 2012

Uma vontade

Quero acordar bem cedo e ver no dia o sorriso decente de uma criança tímida, esparramar as vasilhas pela sala, fazer quinhentos gramas de café e dizer ao nada que a vida é bela, como se o dito fosse uma constante nota de sarcasmo. Quero encobrir a mesa com um pano verde antes mesmo de saber o dia de hoje – uma segunda feira talvez? – e pedir a Deus para que esse mesmo dia passe logo, em silêncio, como quem sai pela porta dos fundos. Quero viver eternamente no final do expediente, em que o cansaço toma conta de todos os sentidos. Quero compreender o mundo com beleza. Não essa beleza que nos vem de fora, mas uma beleza concreta de um velho ranzinza, que chora, ao se afastar de todas as surpresas. Chegar à conclusão de que tudo a minha volta não passa de versos repetidos de um poema triste, mas sincero. Quero, enfim, rasgar a pele morta que me entoa os olhos, e fazer dela roupa fina.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Pensamento em hora vaga

Hoje, quando eu acordei, pensei em ser um fazendeiro. Não um fazendeiro grande, como esses do Mato Grosso. Sonho de pobre é sonho curto e limitado pelo pouco que se ganha. Queria apenas um pedaçinho de terra, criar galinhas, enchiqueirar uns porcos e ter no fundo de um barraco velho uma plantaçãozinha de mandioca, ou quem sabe couve. Pensei ainda em me embestar pro pantanal, viver encostado num rio até que os sentidos se dissolvam no marasmo. Vida boa é aquela em que a vontade e a possibilidade são tão próximas como se fossem namoradas. É aquela em que as pernas acompanham o movimento dos sonhos, lançados no infinito como se fossem propaganda. Uma vida em que o nome dos dias já não importa tanto, são lembranças, que na maioria das vezes nos retomam coisas mortas. Talvez, quando eu estiver no meu pedaçinho de terra, sentado numa velha cadeira de balanço, ia querer ficar durante horas pensando em como seria, se por caso, eu vivesse no litoral catarinense.

domingo, 1 de abril de 2012

Sonho


Despertei de um sonho em que as pessoas eram bichos, iam e vinham, como bichos que andam, que falam, que sentem. Apertavam as mãos quando conheciam um ao outro e também compravam coisas. Haviam tartarugas sentadas em seus banquinhos de pedra batida, jogando baralho e conversando sobre as perdas que nos batem à porta em dias de terça, e depois vão embora, deixando um tanto considerável de si, em forma de lembranças. Vi um coletivo de pombas fazendo graçinhas e levando uma bela bronca da coruja, a professora. O macaco, com sua voz tacanha, acenando a todos com suas edições de “o diário dos bichos”, gritava alto, fazendo propaganda. Dei de ombros e saí, sem dizer palavra. E fui andando pela rua triste, deixando que o corpo seguisse a tristeza que escorria pelas sarjetas, como uma lama vermelho-amarronzada, meio de barro, meio de sangue. Quando dobrei a esquina, me veio um abutre. Olhei-o por alguns minutos e percebi que sua face carregava certo aspecto pueril. Me pediu um cigarro e, ao ver que ele tinha um leve sotaque do sul, tive a impressão de que aquele abutre bonachão era o meu pai, escondido nos meus sonhos só para fazer mistério, para dizer poucas e boas. E me disse algo do qual eu não me recordo ao certo, talvez por causa do susto ao ter acordado de supetão. Levantei da cama e fui até a janela do prédio de onde vi um homem, que estava sentado na porta de uma loja. A noite estava fria e o vento foi entrando no meu quarto como quem procura algo, encontrando apenas sonhos, bobos e sem importância, pregados na parede.