segunda-feira, 26 de março de 2012

Um momento


Nos seus olhos havia um momento de beleza, aquele momento em que o brilho se transforma em uma lenta explosão de cores e de sentidos. Havia carros, eu me lembro, e havia também meninos brincando. Suas mãos estavam quentes e um pouco molhadas, talvez por causa da chuva, e apertavam o concreto como se quisessem moldá-lo. Na hora do beijo, me senti vulgar, frio, aproveitador e meio pateta. Você me puxou contra o seu corpo e eu apenas obedeci, deixando me levar pelo movimento rápido de um novo sentimento, que acabara de tomar sua primeira forma. Fui seguindo o abrir e fechar dos lábios sem saber direito como fazê-lo, e suas mãos foram deixando, lentas, o concreto, me vieram à nuca, me apertaram os ombros e deslizaram no meu peito como se quisessem se despedir sem deixar remorsos. A princípio, num gesto que recebi com susto, não deixei. Segurei-a pelo pulso e a senti assustada. E você se afastou sorrindo, se lembra? Se afastou sorrindo e me deixou sorrindo também, como um bobo. Boca, mãos, ombros, nuca, peito, beijo. Tudo ficou embaralhado. Como pude? Como pude fazer isso? Deixá-la ir assim? Por que não volta? Sem telefone, sem nada? Como a verei de novo? Foi um momento de beleza em minha vida, desses em que os olhos não enxergam o mundo, mas o imaginário de uma mente vaga e destoada do tempo, que fantasia, pelo simples motivo de fazer dos sonhos realidade sensível às vistas. Lembro-me dos seus olhos com desassossego, como se eu fosse encontrá-los num dia de domingo, emoldurados de simplicidade e de amor, um amor calmo, que me entra pelos cabelos como se fossem carícias.

domingo, 25 de março de 2012

Emiliano

Emiliano era como um rochedo, impenetrável e duro, não se deixava levar por nenhum tipo de lamúria, tristeza ou mesmo felicidade passageira.  Às vezes, ficávamos juntos perto do rio e conversávamos sempre sobre várias coisas, e era onde Emiliano me deixava claro seus objetivos quanto à catequese. “Laura, ainda me caso com ela e a farei dona do mundo”, dizia ele. Quando declamava os versículos da bíblia, nas aulas de catequese, era como um poeta das ruas ao declamar suas injúrias, empastelado de amor e de sossego aparente. E eu me recolhia em meu mundo tentando decifrar o dele, aquele mundo em que meu grande amigo parecia um rei, cheio de certezas e de desmandos, como se tudo ao seu redor funcionasse como queria a sua vontade, sem que ele precisasse dizer uma palavra em alto. Nas missas, ficava ao meu lado observando Laura, como quem vigia, e me relatava todos os seus movimentos, baixinho, para não atrapalhar o sermão. Há pessoas que o mundo parece gostar mais do que as outras, que as vontades parecem fazer parte do movimento insólito dos dias, que as manhãs encouram de pudor e de virtudes e que todos os problemas parecem lampejos de um mal estado dos nervos. Emiliano, que morrera à pouco mais de dez anos, era como um amante de uma vida que pendia entre a virtude e o desejo incontrolável de ser único, e o era, na medida em que habita a pouca vida que ainda me resta, com sua voz sincera de sonhos e de uma quase inesquecível infância.

Uma dor de estômago

A baixa produtividade no setor industrial, a falta de investimentos públicos e os cortes orçamentários já estão começando a me provocar uma quase incômoda dor de barriga. Quantas coisas ainda virão para que a ciência dos homens admita o seu grande erro, o mesmo erro cometido pelos renascentistas e iluministas, de idealizarem uma forma perfeita de homem sendo que ela não existe? Quantas crises virão para mostrar ao homem que as conjunturas já não lhe estão de acordo, pelo menos naquilo que se refere à representação do Estado?  Quantos desempregados e mortos terão que aparecer no noticiário para percebermos a completa incoerência atual do pensamento humano, que ainda gira em torno de uma prometida ordem das coisas vinda de cima?  Quantas revistas caras terão que ser queimadas no fogo do materialismo para percebermos que suas notícias já não refletem o mundo sensível, pelo menos aquele que é vivido pelos seus leitores? O pior de não saber responder a tudo é tentá-lo fazer mesmo que as palavras saiam todas empoladas. Vejo que cresce a necessidade de se olhar para o estômago, e ver a falta que lhe faz um agrado, mesmo que seja em forma de salário mínimo. Mas a esmola já não é suficiente.  Na medida em que cresce sua influência, cresce também a necessidade daquele que a recebe, como um vício, que vai passando pelos tempos até se transformar em força bruta. E agora, cuidarei da minha pouca e flexível barriga, que me entorta o intestino e acaba de dizer que está vazia, em desabafo.

Revisionismo

O revisionismo, de tempos em tempos, causa medo aos mais avançados pensamentos revoltosos. Não se trata apenas do ato de revisar, mas sim, de reformar. É como pensarmos em alguém que quer manter a casa como está depois de um longo e difícil trabalho dos pedreiros. Como se fosse possível reformar a sala sem mudar a cor e a composição das paredes, ou dormir com o mesmo conforto em um quarto cujas paredes, o telhado, e o piso mudaram de forma, de cor, e de sentido. Paradoxo não muito fácil de se resolver, principalmente quando se trata dos mais apegados aos antigos costumes, aos antigos ditos e ao peso que a tradição impõe às percepções e falas.  Mas há aqueles que o recusam como sendo o mais mortal pecado, como se a casa tivesse que ser apenas uma, e o quarto não mudasse de piso e mantivesse a parede intacta até que se desbotem e caiam, de tão velhos. Há também alguns terceiros, utilitários das ambiguidades proporcionadas pela vastidão da língua, que ficam no meio, assistindo tudo de longe e apostando num futuro próspero, e que não conseguem fazerem-se compreender, nem mesmo quando se dirigem aos mais altos entendedores. É preciso revisar, sem deixar de ser o mesmo em sua mais bruta e doce essência.

Desnacionalizados

Bem aventurado é aquele que nasce desprovido de nacionalismos. É livre, na medida em que as bandeiras amarelo-mangas, vermelhas e azuis, brancas e de outras cores variadas, não lhe causam aquela vontade cega de se atirar em guerras sem nenhum sentido, nem lhe provocam nenhum tipo de nojo inconsciente  e inexplicável. As filas na escola, o respeito e os hinos cantados harmoniosamente da boca para fora lhe são estranhos, assim como o discurso daquele louco professor entusiasta, falando sobre as batalhas sangrentas e heroicas das guerras mundiais. Sua razão de existir é o estômago, apenas ele. Segue seus movimentos e seus pedidos ao mesmo passo em que o cristão segue seu santo, dando-lhe notas de repúdio quando não se cala, e agradecendo-o na medida do possível. Bem aventurados são aqueles que nascem sem nacionalismos, e que se fazem e se levantam não no seio de uma bandeira de pano qualquer, mas no desenvolvimento de sua triste condição social.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Uma breve reclamação

Fico realmente triste com certo grupo de pessoas. São exatamente aquelas que da boca se utilizam para formar o pensamento, falando primeiro e pensando depois. Gostam de dizer as suas verdades em alto, tão alto como a voz de Deus, ofuscando falas que lhe são estranhas. E o pior é que fazem isso de propósito, como em um jogo de capoeira, evitando dar espaço ao outro para lhe impor os golpes. Saem vitoriosos e felizes. Mal imaginam que suas falas são confusas e servem apenas para justificar o erro. Não refletem sobre a relação que existe entre o mundo objetivo e a teoria, se utilizando da segunda para justificar o que pensa em relação à primeira. Não fazem o parâmetro entre concreto e abstrato, vendo apenas um, ou outro. Para esses, que não conseguem ver além daquilo alcançado pela boca, que não buscam a verdade partindo exatamente dela, e saem por aí dizendo bobagens como, por exemplo, “O mundo é assim mesmo”, justificando a sua posição parada e triste, jogo uma pergunta: Se te orgulhas com fato de tua boca ser tão afiada como uma espada em brasa, por que não a usa contra àqueles que a calam, todos os dias, nos jornais e nas novelas, e também nas leis?

Vento

Comecei o dia enfezando o vento. Fui falando um monte de bobagens, chamando-o de bobo, pau-mandado das nuvens, manso e tolo revisionista que se finge no invisível. Até peguei o ventilador, no quarto, e liguei bem na sua frente, contra o seu movimento, pra fazer oposição. Fui fazendo fusquinha e até mostrei o dedo. Ele me disse, depois de muito tempo, que por mais que eu tentasse, ele não ia ficar bravo, pois tinha o apoio dos passarinhos, das árvores e até mesmo dos cachorros e gatos. Falou que não queria perder a tranqüilidade, que estava bom assim, pois era domingo, dia de descanso. Depois disso, perguntei: Se os passarinhos lhe apóiam, por que é que eu não estou vendo nenhum agora? Ele ficou quieto, num silêncio absoluto de vento, e continuou tranqüilo, aparentemente. Mais tarde, quando eu quase já não tinha forças, me veio um pombo na janela, meio triste, e depois foi embora, como se quisesse dizer algo e não pudesse, por pressões maiores. E o vento começou a bradar como se fosse perder o seu posto de vento, tão forte, que me arrancou grande parte do telhado feito de barro, e de esperança.