quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Visita

Veio de repente, o andar trôpego, como se seguisse uma linha destoada do tempo, acompanhando as curvas que se colocavam no caminho de forma consciente e que mostravam certo questionamento à normalidade das coisas. Não disse nada, apenas apoiou-se em meus braços que mal suportavam o peso das responsabilidades. Deitou-se no sofá da sala e soltou um bocejo que recebi como um insulto e, ao mesmo, uma forma de me fazer relembrar algo que já escurecera, que eu já havia jogado num canto apagado da memória. Murmurou em tom grave algumas palavras preguiçosas, fazendo com que a disposição em ouvi-las voltasse de uma longa viagem ao exterior depois de longos anos de espera, e batesse na porta num dia de chuva. Eram as mesmas palavras, que eu acreditava já estarem mortas, embalsamadas de um aroma que me tornara indiferente ao que havia passado. Percebi que estava mais encorpado e que seus cabelos estavam mais secos e menos cuidados, danados pelos atropelos do mundo. Mas aquelas palavras me fizeram lembrar do seu antigo rosto, que parecia uma representação heróica de algum personagem cujos segredos eram apenas imperfeições dissolvidas na tentativa de sempre se manter altivo. Quando me sentei no sofá, fazendo sala aos seus movimentos e métodos de conquista, vi seus olhos voltados para o vazio de um mundo imaginário e desprovido de forma, como se buscassem uma explicação desnecessária ao momento e canalizassem um ponto fosco em meio a cores variadas. Depois de ultrapassar as barreiras do medo, passei a ponta dos dedos nos ombros comprimidos – talvez por uma distante sensação de culpa – e tateei os cabelos que se estendiam até a curva bem definida do rosto. Como resposta, desferiu um abraço que desestruturou algumas certezas que eu havia retomado há meses, num golpe que não recebi como violento porque o esperava, sempre o estive esperando. Veio em passos bêbados titubeando ao som de um eterno samba triste, e depois foi embora, me deixando a esmo e me colocando na eterna prática de desnudar o branco do papel.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Desabafo em cor salubre

Ela entrou séria, os passos rápidos e em harmonia com o tamanho. O rosto, desalinhado e murcho, sinalizava o seu estado de ira. Lançou um olhar vigilante em volta, como quem procura o indesejável, a fim de evitá-lo. Encostou os braços no balcão de forma que seu corpo pudesse descansar um pouco. Voltou-se para a gerente:
Ele me disse ontem que eu não estou sabendo cuidar do meu filho direito. Ficou falando que tenho tanto tempo para nada, que era bom eu trabalhar logo, procurar algo para me ocupar e não encher o saco. Isso é coisa que se diga? Você acredita nisso, Rê? Quero ver quando me pedir para lavar as roupas dele, fazer a comidinha daquele grosso, quero ver.
          As palavras que a mulher escolheu para dar forma ao seu desabafo causaram um certo desconforto à gerente, que pensou haver muita gente na loja, e que alguém poderia ouvir e julgar de forma errada, como fazem as pessoas, a maioria delas. Tentou se esquivar daquele olhar esperançoso e bruto, como quem não quer saber e se abstém, deslizando o corpo esguio em meio à necessidade de escolher um lado. Frente ao olhar fixo, manteve a postura e ficou como uma estátua indiferente aos namoros que fazem da praça um lugar meio mágico, meio triste. E disse, sem pestanejar:
Calma, ele deve estar cansado, e estressado com a questão do advogado.
Calma? Já tive muita calma até agora, não tenho mais que suportar aqueles insultos só por causa dos problemas que ele arruma por aí. Sempre vem com as desculpas de sempre, que está difícil, que é muita pressão e que eu tenho que ser paciente. Não estou interessada em ganhar o troféu da paciência. Vou ter uma conversinha como ele hoje à noite, você vai ver, e vou arrumar um emprego, assim como ele quer, só para não viver mais presa tendo que escutar calada os latidos de um cachorrinho cego que mal sabe cuidar direito de si mesmo.
Os gestos protagonizados pelas mãos em movimento davam à fala da mulher um ar de simplicidade escondida em roupas caras. Subiam e desciam, acompanhando aquele choro em sua forma mais coerente, mais concreta, de forma que o repentino aparecimento do autor do insulto não causaria nenhum desconforto ao espetáculo em frente ao balcão.
           A gerente não sabia o que dizer. Compreendia tudo, como das outras vezes em que teve que segurar a barra, ser apoio dos patrões que pareciam se encontrar num estado de desorientação perene, mas as palavras ficaram presas na garganta, e não disse nada, não correspondeu ao desespero refletido nos olhos arregalados e vermelhos da mulher, sua patroa. Pensou que não tinha que aguentar aquilo tudo, durante tanto tempo. Queria sair daquele emprego em que se afixara nos últimos sete anos, dentro do qual criou raízes e acabou se transformando no próprio trabalho, e se apartar de todo aquele alvoroçado ambiente de compras e mais compras, e salário baixo. Vi no seu rosto um murmúrio silenciado, talvez pela idéia falsa de que aquilo era parte do trabalho, e depois veio um sorriso, encobrir as palavras que subiram até os olhos, mas que não saíram, de forma alguma.
           Sentindo toda a sua fala transformada em letra morta, que se dissolve no tempo como a gordura ao se deparar com o detergente na hora de lavar as mãos, a patroa, atônita, mexeu em alguns papéis que estavam em cima do balcão – É! realmente não é fácil – disse, suspirando de forma que o vento adentrado no pulmão juntasse nos braços todos os destroços que aquela tempestade havia deixado, e levasse consigo as sobras de uma vida repleta de flores murchas, sugadas pela cede dos beija-flores, e saiu, atendendo ao chamado, sem rodeios, do marido.
Quantas vezes ela me disse isso e não resolveu nada? Parece até que eu sou o marido dela, para o qual ela solta as suas lamentações, e depois, na hora de dormir, na hora certa, deixa de falar o que deve ser dito, que está cansada, essa bruaca enfeitada – me disse a gerente, horas depois, quando tudo já havia passado.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O menino

Gosto de ver as coisas do meu jeito, entortá-las ao ponto de transformar a água em pinga doce. Gosto de dar nome às pedras que ficam à deriva, entregando-as ao prazer da existência viva. Gostaria também de colocar o mundo em uma gaveta do meu criado mudo, e usá-lo todas as vezes em que fosse aos bares, só para impressionar a menina de vestido amarelo, e depois colocá-lo de volta na gaveta, envolvendo-o na penumbra densa do quadrado. De que vale a verdade se nada diz sobre o que queremos ouvir, o que desejamos que seja? Hoje de manhã, um garotinho me parou na rua, pediu esmolas e eu neguei sem olhar direito para o seu rosto empoado e triste. Não porque o dinheiro me faltava, mas porque ele me veio num desses momentos apressados em que tudo a nossa volta não passa de sombras vertiginosas do mundo. “Não tenho agora”, eu disse, e saí em passos apressados, alongados pelo ímpeto competitivo de chegar primeiro. O alarido urbano estonteava a minha vaga lucidez e me sentei num banco próximo a uma cervejaria. Descansado depois de algumas horas, voltei, e o garoto não estava, sumiu em meio ao pranto coletivo do submundo, grito desesperado que ressoa em eco aos ouvidos mais atentos. Pensei que nunca mais o veria, nunca mais poderia corrigir o erro consequente de uma distração comum e tola. Fui embora meio triste, não tão triste como aquele que não teve o que pediu, nem de mim, nem de Deus – mas triste como um carneiro que é impedido de pensar sozinho, e que segue os outros, sem dizer palavra.