terça-feira, 20 de setembro de 2011

Desabafo em cor salubre

Ela entrou séria, os passos rápidos e em harmonia com o tamanho. O rosto, desalinhado e murcho, sinalizava o seu estado de ira. Lançou um olhar vigilante em volta, como quem procura o indesejável, a fim de evitá-lo. Encostou os braços no balcão de forma que seu corpo pudesse descansar um pouco. Voltou-se para a gerente:
Ele me disse ontem que eu não estou sabendo cuidar do meu filho direito. Ficou falando que tenho tanto tempo para nada, que era bom eu trabalhar logo, procurar algo para me ocupar e não encher o saco. Isso é coisa que se diga? Você acredita nisso, Rê? Quero ver quando me pedir para lavar as roupas dele, fazer a comidinha daquele grosso, quero ver.
          As palavras que a mulher escolheu para dar forma ao seu desabafo causaram um certo desconforto à gerente, que pensou haver muita gente na loja, e que alguém poderia ouvir e julgar de forma errada, como fazem as pessoas, a maioria delas. Tentou se esquivar daquele olhar esperançoso e bruto, como quem não quer saber e se abstém, deslizando o corpo esguio em meio à necessidade de escolher um lado. Frente ao olhar fixo, manteve a postura e ficou como uma estátua indiferente aos namoros que fazem da praça um lugar meio mágico, meio triste. E disse, sem pestanejar:
Calma, ele deve estar cansado, e estressado com a questão do advogado.
Calma? Já tive muita calma até agora, não tenho mais que suportar aqueles insultos só por causa dos problemas que ele arruma por aí. Sempre vem com as desculpas de sempre, que está difícil, que é muita pressão e que eu tenho que ser paciente. Não estou interessada em ganhar o troféu da paciência. Vou ter uma conversinha como ele hoje à noite, você vai ver, e vou arrumar um emprego, assim como ele quer, só para não viver mais presa tendo que escutar calada os latidos de um cachorrinho cego que mal sabe cuidar direito de si mesmo.
Os gestos protagonizados pelas mãos em movimento davam à fala da mulher um ar de simplicidade escondida em roupas caras. Subiam e desciam, acompanhando aquele choro em sua forma mais coerente, mais concreta, de forma que o repentino aparecimento do autor do insulto não causaria nenhum desconforto ao espetáculo em frente ao balcão.
           A gerente não sabia o que dizer. Compreendia tudo, como das outras vezes em que teve que segurar a barra, ser apoio dos patrões que pareciam se encontrar num estado de desorientação perene, mas as palavras ficaram presas na garganta, e não disse nada, não correspondeu ao desespero refletido nos olhos arregalados e vermelhos da mulher, sua patroa. Pensou que não tinha que aguentar aquilo tudo, durante tanto tempo. Queria sair daquele emprego em que se afixara nos últimos sete anos, dentro do qual criou raízes e acabou se transformando no próprio trabalho, e se apartar de todo aquele alvoroçado ambiente de compras e mais compras, e salário baixo. Vi no seu rosto um murmúrio silenciado, talvez pela idéia falsa de que aquilo era parte do trabalho, e depois veio um sorriso, encobrir as palavras que subiram até os olhos, mas que não saíram, de forma alguma.
           Sentindo toda a sua fala transformada em letra morta, que se dissolve no tempo como a gordura ao se deparar com o detergente na hora de lavar as mãos, a patroa, atônita, mexeu em alguns papéis que estavam em cima do balcão – É! realmente não é fácil – disse, suspirando de forma que o vento adentrado no pulmão juntasse nos braços todos os destroços que aquela tempestade havia deixado, e levasse consigo as sobras de uma vida repleta de flores murchas, sugadas pela cede dos beija-flores, e saiu, atendendo ao chamado, sem rodeios, do marido.
Quantas vezes ela me disse isso e não resolveu nada? Parece até que eu sou o marido dela, para o qual ela solta as suas lamentações, e depois, na hora de dormir, na hora certa, deixa de falar o que deve ser dito, que está cansada, essa bruaca enfeitada – me disse a gerente, horas depois, quando tudo já havia passado.

Um comentário:

  1. Ramiro, cada vez que faço uma visita me deparo com um texto mais surpreendente e gostoso de ler. Nesse senti as angústias do ser humano diante da vida, diante do emprego, do relacionamento, diante de tudo. Algo para se refletir, a necessidade de mudança, que todo homem um dia há de sentir. Muito bacana...Parabéns!!

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