quinta-feira, 30 de junho de 2011

Do outro lado da rua


            Pereira Matos estava em frente à sua casa, desfrutando do seu tempo para refletir sobre a velhice. Sentado, lembrava-se de tudo que não deveria ter feito e não se arrependeu. Gostava de pensar que se não tivesse feito aquelas coisas – e foram muitas – não estaria ali, sem problemas maiores, levando a sua vida baseada no suprimento das necessidades. Da velha cadeira de fios brancos, olhava os meninos jogando bola, cheios de vida, do outro lado da rua, e lembrara da sua difícil juventude.
                – Olá senhor Matos, tudo bem? – disse, respeitosamente, uma menina de mais ou menos dezessete anos que passava por ali.
– Bem!
– Dona Tereza está?
– Não! Foi fazer unha.
– Eu queria acertar umas contas com ela, da loja de bijuterias.
– Pode passar depois?
– Sim, claro. Aproveito para marcar unha. A que horas posso passar?
– Oito, pode ser?
– Pode sim. Obrigada, senhor Matos, e boa tarde para o senhor.
– Boa Tarde.
            O velho baixou a cabeça, pigarreou, apanhou o cigarro no bolso e começou a fumar descansado. Enquanto a jovem caminhava, acompanhada pelos olhares e assovios de um grupo de rapazes que passava por ali, montados em suas motocicletas, um grito fino de menino se sobrepunha ao som dos motores das motos.
– Senhor Matos, cuidado!
E a bola bateu bem na cara de Pereira Matos, deixando-lhe numa situação extremamente constrangedora. Ao verem e ouvirem o velho levantar e lançar-lhes alguns ofensivos xingamentos, os meninos trataram de pegar a bola depressa, colocá-la em campo, e continuar com o jogo como se nada tivesse acontecido. Já o velho, nervoso, pegou a sua velha cadeira, virou as costas para a rua, e também para o mundo, e entrou em casa. Ligou a TV e sentou-se na poltrona de couro sintético, a fim de esperar o programa de domingo à tarde.

domingo, 19 de junho de 2011

Cerveja, cigarros e uma carta indesejada

            O garçom colocou a cerveja gelada dentro do recipiente, pegou o pequeno copo de vidro, o suspendeu até a boca da garrafa e derramou o líquido com cuidado. Com o outro copo, repetiu o gesto.
– Mais alguma coisa?
– Não, obrigado.
– Estarei logo ali no corredor. Se precisarem, podem me chamar.
– Está certo, qualquer coisa o chamaremos.
            Estavam sentados, um de frente para o outro, numa pequena mesa localizada a um canto pouco iluminado do estabelecimento. Havia um aglomerado de gente na frente do palco, onde estava acontecendo uma apresentação de música regional. As pessoas riam embriagadas, levantando os braços e acompanhando desordenadamente a cantoria.
– O pessoal está bem animado, não é mesmo?
– Sim, estou vendo. Parece um bando de ovelhinhas comemorando a limitada liberdade concedida pelo sistema.
– Pare de ser tão radical, Pedro, eles estão apenas se divertindo.
– Dizer a verdade não é ser radical. O que acontece é que encobrimos o mal para nos adaptarmos ao sistema, para que as pessoas gostem de nós e não nos critiquem. Eu não tenho medo de ser criticado, portanto, a verdade para mim tem que ser dita, mesmo que me custe a reputação.
– A sua reputação já está bem comprometida por conta desses comentários que você anda fazendo. Depois que você entrou para esse partido, fica falando esse monte de coisas que afastam as pessoas.
– Não é o partido que afasta as pessoas, mas a verdade.
– Como é difícil conversar com esse meu ursinho lindo!...
– Fale baixo, por favor.
– Baixo? Por quê? Está com vergonha de mim? Fique tranqüilo, as pessoas estão todas ocupadas curtindo a – como é que você diz mesmo? “Liberdade limitada”.
            Riram juntos. Tomaram cerveja de forma sincronizada. Pedro acendeu um cigarro após o longo gole. Soltou a fumaça devagar, olhando-a, como quem aprecia o movimento épico de uma dançarina de balé clássico.
– Eu adoro beber depois que saio do trabalho. Todos deveriam ter esse direito, sem exceção. Imagine se tivéssemos dinheiro para beber todos os dias?
– Ia ser engraçado.
                – Por que engraçado?
– Quando você fica bêbado, fica engraçado.
– Engraçado? Como assim?
– Sei lá! Fica com cara de sono e falando meio lento. Apesar disso, fala sem parar. Aliás, quando você está bêbado, você não fala, dá palestra, e com a voz molinha, molinha. Eu acho engraçado, mas gosto.
– Quer dizer então que você gosta da minha voz de bêbado?
– Não da sua voz de bêbado, mas de ouvir você falar bastante. Você fica o dia todo quieto, fala muito pouco. Quando fala bastante eu gosto.
– Então, a partir de agora, eu vou falar bastante. Conversarei sobre várias coisas com o meu amor.
            Tocaram-se discretamente. Pedro acariciou o rosto à sua frente, que se mostrava belo e calmo. Passou a mão, devagar, nos cabelos louros e ressecados, deslizando os dedos nos olhos esverdeados, que se fecharam ao sentir do toque. Sentiu a face esquerda um pouco áspera e viu que havia uma marca roxa no pescoço.
– O que foi isso?
– Acidente de trabalho.
            Pedro, já começando a ficar tonto, baixou a cabeça como quem começa a refletir. Lançou seu olhar vago para uma pessoa qualquer que passava perto da mesa. Passou a mão na sua barba mal feita e limpou seus olhos, que começavam a ficar encharcados e vermelhos. Bebeu mais um gole de cerveja e continuou em silêncio.
– Não se preocupe, meu amor, é assim mesmo. Essas coisas acontecem com todos que estão nesse ramo. Se não fosse o meu trabalho, não estaríamos aqui tomando essa cerveja, não é mesmo?
– Prometo que, assim que eu conseguir um emprego mais rentável, isso tudo vai acabar.
– Pedro, meu amor, não se preocupe com isso. Você é um anjo e nós nos amamos, é isso que importa. Não fique tão preocupado comigo, você já tem as suas preocupações.
            Mais uma vez, Pedro enxugou as lágrimas que começaram a escorrer pelo seu rosto. Levantou-se rapidamente, de forma que ninguém percebesse o seu estado. No banheiro, lavou o rosto com uma grande quantidade de água. Olhou para o espelho e viu que seus olhos ainda estavam inchados. Esperou mais um pouco e voltou para a mesa que, para o espanto do rapaz, estava vazia.
            Olhou para todos os cantos do estabelecimento. Não vendo ninguém, voltou à mesa para tentar encontrar algum sinal de vida da sua companhia. Sentou-se devagar e esperou um pouco.
– O senhor que estava na mesa pediu para que eu lhe entregasse esse papel – disse o garçom meio embaraçado.
– Ele foi embora?
– Sim, saiu às pressas depois de receber um telefonema.
            Com as mãos trêmulas, abriu o papel devagar. Era uma pequena folha branca manchada de restos de cerveja, na qual estava escrita, de caneta vermelha, uma pequena mensagem.
“Tive que sair às pressas. Recebi um telefonema de um cliente importante que precisava do meu trabalho. Peço-lhe desculpas pelo transtorno. Deixei a cerveja que tomamos paga e um pouquinho de dinheiro embaixo do porta-guardanapos. Se quiser, não precisa me ligar de volta, pois compreendo como deve estar sendo difícil esta situação para você. Só quero que você não se esqueça que é a pessoa mais linda e mais especial que já conheci. Te amo muito.
                                                                                                                      M.A”
            Dobrou o papel que acabara de ler e colocou-o no bolso.
– Obrigado, senhor. Pode me pegar mais uma cerveja?
– Pois não, mais alguma coisa?
– É só.
            Enquanto esperava a cerveja, pegou o único cigarro que se encontrava no pacote. Com o isqueiro, tentou, sem sucesso, acendê-lo. Na segunda tentativa, conseguiu acender apenas uma parte da ponta, o que foi suficiente para que Pedro continuasse a admirar a fumaça saindo, leve e triste, dançando com o vento. como se fosse uma bailarina entorpecida.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Mayuca

O sol estava bem em cima de sua cabeça, esquentando ainda mais seus finos e secos cabelos. Sua pele ficava, a cada minuto, cada vez mais avermelhada. Mas o bugre ainda estava ali, sentado no galho seco, esperando seu companheiro de caça.
            Com a mão direita, pegou uma pedra em forma de disco e a jogou no rio. A pedra pingou três vezes e afundou, fazendo com que o índio, já impaciente, descesse do galho com raiva.
Mayuca está perdendo a prática, heim! Será que meu velho companheiro, o mais ágil da tribo, está ficando com os seus reflexos mais lentos por causa da idade avançada?
O que Botuiaiá fazia que demorou tanto pra chegar? A luz que ilumina o mundo já está no meio do céu, já passou da hora de irmos caçar. Podemos até perder metade do dia por causa de Botuiáiá.
Desculpe, Mayuca! Tive um desentendimento caseiro. Mandira está me dando muito trabalho, principalmente depois que os meninos chegaram do seu ventre. Se eu soubesse que ia ser assim, tinha ficado na festa do seu primo em vez de pedir a mão dela em casamento. Lembra como foi a festa? Nunca mais fiquei tão bêbado como naquele dia!
Bons tempos, mas agora é hora de começarmos a correr atrás da nossa comida da semana e adiarmos o nosso papo furado, pois estamos atrasados. Pegue essa cuia grande que eu trouxe, e a rede de pegar peixe. Vamos torcer para que o Grande Rio esteja generoso e nos dê muita comida fresca.
Você é quem manda, companheiro. Só não quero que fique bravo comigo.
            Os dois caçadores começaram a caminhar nas margens do Grande Rio. Eram amigos desde os ensinamentos primários e se conheceram em uma briga cujos envolvidos eram os próprios. Gostavam de conversar sobre a adolescência e a juventude. Lembravam, sempre que se viam, das bebedeiras e das travessuras com as mulheres da tribo.
Lembra de Jubira, aquela velha que você se engraçou? Te gozamos durante o ano inteiro.
Você é muito preconceituoso. Ela não era velha e me ensinou várias coisas sobre como fazer pra deixar índia doidinha.
Me lembro que você comia bosta de tatu por causa dela! Ficou babando ovo durante um bom tempo.
Você diz isso porque não foi contigo, seu índio filho da puta.
            No final do dia, quando a luz que ilumina o mundo estava terminando o seu ciclo, lançando apenas algumas luzes alaranjadas e fracas naquela parte da Terra, os índios caminhavam de volta pra casa, sorrindo satisfeitos com suas caças, que eram carregadas sobre seus ombros pardos e musculosos. A água do Grande Rio passava por cima dos seus pés de unhas cascudas. Os bugres andavam em passos vagarosos e cansados, de tanto sustentar seus grandes corpos e cargas. Olhando para o rio, Mayuca perguntou ao seu amigo: 
Você prestou atenção ao que disse o mestre Sussumira, ontem à noite?
Mais ou menos – respondeu o amigo – eu estava ainda tonto por causa do tatu e da água de cana que tomamos naquele dia à tarde.
Pois então! Mestre Sussumira veio com uma história de que seremos visitados por uma gente diferente, montadas em canoas gigantes nas quais estará escrita, bem na lateral, a palavra “desenvolvimento”, palavra essa que o velho não sabia decifrar. Segundo ele, essas pessoas têm a pele cor de castanha de coco, e vêm para acabar com a nossa tribo e com todas as tribos vizinhas. Depois disso, eles irão acabar até com Tupã e toda a sua criação, trazendo a divindade deles. Falou ainda que seremos escravos desse povo. Não sei se ele estava falando sério. Tem gente que fala que algumas dessas pessoas foram vistas e até já são amigas de alguns dos nossos.
            Botuiáiá lançou uma longa e alta risada. Engasgou, de tanto rir. Virou para o amigo seu rosto zombeteiro e disse:
Ninguém acredita mais no velho! Tem gente falando que ele está ficando é doido, de tanto ficar conversando com o Grande Rio. Se eu fosse você, parava com esse negócio de ficar tentando adivinhar o que vai acontecer no próximo ciclo da vida e começava a cuidar de suas filhas, que já estão grandinhas e caindo nas graças dos índios mais jovens.
Não sei, não! Acho que é muita arrogância nossa achar que somos os únicos por aqui.
Você anda dando muita atenção pra essas coisas de religião. Eu não vou falar mais nada, e deixar você com sua doidice. Se suas filhas começarem a agir iguais às índias da noite, não venha dizer que eu não avisei.
            Depois que os dois índios chegaram na tribo, Mayuca se despediu do amigo. Andou algumas centenas de metros até chegar em sua pequena oca. Aproximando-se da porta de entrada, parou. Olhou em volta, para todos aqueles índios cuidando de suas vidas. Viu que havia algumas crianças brincando perto do caldeirão. Ouviu as vozes das mulheres que o esperavam felizes, e preferiu, naquele momento, não pensar mais no ciclo da vida que, no dia seguinte, seria substituído por um novo jeito de se ver o mundo.