sexta-feira, 3 de junho de 2011

Mayuca

O sol estava bem em cima de sua cabeça, esquentando ainda mais seus finos e secos cabelos. Sua pele ficava, a cada minuto, cada vez mais avermelhada. Mas o bugre ainda estava ali, sentado no galho seco, esperando seu companheiro de caça.
            Com a mão direita, pegou uma pedra em forma de disco e a jogou no rio. A pedra pingou três vezes e afundou, fazendo com que o índio, já impaciente, descesse do galho com raiva.
Mayuca está perdendo a prática, heim! Será que meu velho companheiro, o mais ágil da tribo, está ficando com os seus reflexos mais lentos por causa da idade avançada?
O que Botuiaiá fazia que demorou tanto pra chegar? A luz que ilumina o mundo já está no meio do céu, já passou da hora de irmos caçar. Podemos até perder metade do dia por causa de Botuiáiá.
Desculpe, Mayuca! Tive um desentendimento caseiro. Mandira está me dando muito trabalho, principalmente depois que os meninos chegaram do seu ventre. Se eu soubesse que ia ser assim, tinha ficado na festa do seu primo em vez de pedir a mão dela em casamento. Lembra como foi a festa? Nunca mais fiquei tão bêbado como naquele dia!
Bons tempos, mas agora é hora de começarmos a correr atrás da nossa comida da semana e adiarmos o nosso papo furado, pois estamos atrasados. Pegue essa cuia grande que eu trouxe, e a rede de pegar peixe. Vamos torcer para que o Grande Rio esteja generoso e nos dê muita comida fresca.
Você é quem manda, companheiro. Só não quero que fique bravo comigo.
            Os dois caçadores começaram a caminhar nas margens do Grande Rio. Eram amigos desde os ensinamentos primários e se conheceram em uma briga cujos envolvidos eram os próprios. Gostavam de conversar sobre a adolescência e a juventude. Lembravam, sempre que se viam, das bebedeiras e das travessuras com as mulheres da tribo.
Lembra de Jubira, aquela velha que você se engraçou? Te gozamos durante o ano inteiro.
Você é muito preconceituoso. Ela não era velha e me ensinou várias coisas sobre como fazer pra deixar índia doidinha.
Me lembro que você comia bosta de tatu por causa dela! Ficou babando ovo durante um bom tempo.
Você diz isso porque não foi contigo, seu índio filho da puta.
            No final do dia, quando a luz que ilumina o mundo estava terminando o seu ciclo, lançando apenas algumas luzes alaranjadas e fracas naquela parte da Terra, os índios caminhavam de volta pra casa, sorrindo satisfeitos com suas caças, que eram carregadas sobre seus ombros pardos e musculosos. A água do Grande Rio passava por cima dos seus pés de unhas cascudas. Os bugres andavam em passos vagarosos e cansados, de tanto sustentar seus grandes corpos e cargas. Olhando para o rio, Mayuca perguntou ao seu amigo: 
Você prestou atenção ao que disse o mestre Sussumira, ontem à noite?
Mais ou menos – respondeu o amigo – eu estava ainda tonto por causa do tatu e da água de cana que tomamos naquele dia à tarde.
Pois então! Mestre Sussumira veio com uma história de que seremos visitados por uma gente diferente, montadas em canoas gigantes nas quais estará escrita, bem na lateral, a palavra “desenvolvimento”, palavra essa que o velho não sabia decifrar. Segundo ele, essas pessoas têm a pele cor de castanha de coco, e vêm para acabar com a nossa tribo e com todas as tribos vizinhas. Depois disso, eles irão acabar até com Tupã e toda a sua criação, trazendo a divindade deles. Falou ainda que seremos escravos desse povo. Não sei se ele estava falando sério. Tem gente que fala que algumas dessas pessoas foram vistas e até já são amigas de alguns dos nossos.
            Botuiáiá lançou uma longa e alta risada. Engasgou, de tanto rir. Virou para o amigo seu rosto zombeteiro e disse:
Ninguém acredita mais no velho! Tem gente falando que ele está ficando é doido, de tanto ficar conversando com o Grande Rio. Se eu fosse você, parava com esse negócio de ficar tentando adivinhar o que vai acontecer no próximo ciclo da vida e começava a cuidar de suas filhas, que já estão grandinhas e caindo nas graças dos índios mais jovens.
Não sei, não! Acho que é muita arrogância nossa achar que somos os únicos por aqui.
Você anda dando muita atenção pra essas coisas de religião. Eu não vou falar mais nada, e deixar você com sua doidice. Se suas filhas começarem a agir iguais às índias da noite, não venha dizer que eu não avisei.
            Depois que os dois índios chegaram na tribo, Mayuca se despediu do amigo. Andou algumas centenas de metros até chegar em sua pequena oca. Aproximando-se da porta de entrada, parou. Olhou em volta, para todos aqueles índios cuidando de suas vidas. Viu que havia algumas crianças brincando perto do caldeirão. Ouviu as vozes das mulheres que o esperavam felizes, e preferiu, naquele momento, não pensar mais no ciclo da vida que, no dia seguinte, seria substituído por um novo jeito de se ver o mundo.

2 comentários:

  1. Ramiro,
    a casa nova está muito bonita e o texto, seguindo o que você tem feito no decorrer do tempo, está ficando cada vez melhor.
    Parabéns!

    Um beijo,
    Maria

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, meu amor.

    Sem você talvez o blog não existisse.

    Foste peça fundamental para a minha literatura.

    Beijos!

    ResponderExcluir