sábado, 31 de dezembro de 2011

Ano-novo

Era ano-novo e o estádio estava quase terminado. Fazia muito calor e não chovia há três meses. O tempo quente o atrapalhava no trabalho, sempre atrapalhou. “Sol na cara não é bom para os olhos, nem para a cabeça” disse o médico do postinho na semana passada. Queria comprar para o filho um tênis, para a filha uma boneca de pano, que ela tinha gostado quando saiu com a mãe num desses passeios de tarde, e para a mulher uma blusinha, amarela com flores verdes, como a bandeira do Brasil. Gostava da bandeira e achava bonita as suas cores. Mas para comprar tudo o que queria comprar tinha que trabalhar além da conta, fazer hora extra. Não tinha carteira registrada e não recebeu o décimo terceiro, não havia jeito. Tinha que dar o máximo para também se redimir com a mulher de outras vezes, outras trapalhadas suas que deram em dura discussão e noites que não foram dormidas, por causa da culpa. Pensava na compra não apenas como forma de satisfazer as vaidades da família, mas como um pedido de desculpas. Andou pelo centro da cidade todo atrás da boneca de pano, da blusinha e do tênis. No outro dia, fez a mesma coisa e, no outro, a mesma coisa. No terceiro dia, já havia gastado o dinheiro recebido da hora extra para fazer umas compras no mercado, não havia outra coisa a fazer. O estômago – pensava ele – não precisa de frescuras, não precisa disso e chama em seco pelo dono, como um bebê que pede, aos choros, o seu leite. Dez quilos de arroz, dois molhos de tomate, cinco pacotes de macarrão parafuso, três quilos de feijão e alguns pães. Quando chegou em casa com as coisas do mercado, pensou ter feito a coisa certa. Os filhos o receberam com um abraço e, a mulher, com um sorriso quase tímido. Os filhos ficaram felizes e a mulher o perdoou – por alguns instantes, pois logo brigaram por ele ter esquecido de comprar o coxão-mole. No ano seguinte, depois das festas e das comemorações, todos puderam assistir à Copa do Mundo pela televisão, com a comida na barriga e os problemas de sempre.

domingo, 27 de novembro de 2011

Frases e versos

“O homem não passa de uma linha quase reta que se desvia das pedras colocadas no caminho”, foi o que me disse Sebastião Pereira, duas semanas antes de morrer ao pé da velha mangueira. Essas palavras me vieram hoje de manhã como num sonho que tarda e que fazem perder boa parte do dia. E assim foi. Um domingo quase todo, perdido na tentativa de desvendar os mistérios enrolados nas entrelinhas da frase, o que me fez perder também o jogo final do campeonato, e que relato agora em prosa pouca, no sentido de socializar a perda. As pedras, provavelmente, seriam os obstáculos colocados para atrapalhar a nossa boa existência, para fazê-la triste, e dar mais intensidade à alegria que nos vem apenas no final. Ou podem ser as ideologias, essas pregadoras e levianas, que nos tiram os ensinamentos da casa e nos levam ao mundo, pregando em letras densas as suas verdades, que se chocam e se batem, exigindo nosso posicionamento. Podem também ser os amores, tristes na sua ausência e tristes também na sua presença fria e descontrolada, levando-nos aos mais absurdos buracos da loucura e tirando-nos os dias tranquilos de relva. “O homem não passa de uma linha quase reta que se desvia das pedras colocadas no caminho”, disse Sebastião Pereira, repetindo mais ou menos o que disse o poeta, sem conhecer a semântica simples daquelas palavras bonitas, escritas em versos, e colocadas na prosa irônica da eternidade, sem pedras, dificuldades, ideologias e nem amores, apenas versos.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Eleições espanholas

Hoje, vivemos numa situação diferente de alguns anos, pelo menos no que se refere às esperanças da população em relação aos seus tutores. Não é de se espantar as inúmeras revoltas ocorrendo em vários países da Europa, levando em consideração as medidas adotadas pelos governos de nomes diferentes, mas que são as mesmas: socializar com a população a responsabilidade de contornar a crise. Quando passava por uma dessas padarias de segunda feira, vi, no jornal da manhã, o desfecho das eleições espanholas. O Partido Popular, que de popular tem apenas o nome e provavelmente a vantagem de poder aparecer na TV aberta como uma possível alternativa política, assume as rédeas de um país em crise. Como desafio, tem o compromisso de acabar com o desemprego que aumenta mais do que barata em casa velha. Talvez, qualquer bom orador, se colocando frente ao público envolvido pelo desespero e vomitando promessas empregadológicas – com influência política, é claro –, num momento desses, teria um bom resultado nessas eleições ou, se não, um amplo apoio de alguns dos mais esperançosos. Para o povo, o importante é a mudança, sem se discutir direito se essa mudança será para melhor ou para pior, discussão limitada hoje aos jornais da tarde e, de vez em quando, aos da porta da madrugada, assumindo posições bem definidas (sobre as quais prefiro silenciar os meus discursos e deixar para os entendimentos que no mundo se fazem e se consolidam). Como se um novo retrato, pregado na parede de uma sala fosca e mal pintada, mudasse o sentido que a vida segue em direção a morte. Como se uma nova babá fizesse das crianças criaturas menos doces e mais adultas, sem contar com o auxílio do tempo. Mas a mudança já se mostra em sua continuidade eterna, observada na conhecida fala “O corte de gastos se coloca como prioridade em nossa política”, assumida pelo novo presidente espanhol, antes mesmo de sua posse. Como se vê, mudam-se as formas, mas o conteúdo continua o mesmo, mostrando o verdadeiro poder do voto e guiando-nos rumo a um quarto escuro e triste, cujo interior – acredito – está prestes a ser iluminado por estrelas vermelhas e revolucionárias, dependendo apenas de nós mesmos.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A comemoração

Hoje, quando via o comercial que mediava os dois tempos do jogo de domingo, tive uma impressão estranha que talvez alguns de vocês, leitores, também tiveram: o aniversário das Casas Bahia acontece todos os meses do ano. Se não é aniversário, é algum tipo de comemoração tão importante quanto, pois os esforços no sentido de comemorá-la são os mesmos. Mas durante alguns momentos fiquei pensando, chegando a conclusão que todos, provavelmente, já tenham chegado, sem haver a necessidade de ver o acontecido: as datas de comemoração dessa empresa, assim como de outras mais, não estão ligadas à felicidade de comemorar o dia, mas aos objetivos dessa comemoração. É mais ou menos o mesmo quando fazemos o tão conhecido “chá de cozinha”, convidando as pessoas a nos darem presentes, como sendo a exigência para poder participar da festa. Mas nas Casas Bahia as coisas se configuram de maneira um pouco diferente. Primeiro, pelo simples motivo de a comemoração não dizer respeito a quem a organiza, mas serve apenas para a alegria hipócrita de quem ordena a sua organização. Segundo, pelo fato de não se tratar de uma festa, mas de um dia que será lembrado pelos seus “associados” como sendo o pior dia do ano (ou do mês), estando longe de ser um dia de comemoração, como nos fazem acreditar as propagandas. Mas não entrarei mais em detalhes, pois jogo a vocês, leitores, idéias para se compreender o mundo (ao meu modo, é claro) e lhes digo o que o sábio dito popular reproduz em sua ciência repleta de grandeza e simplicidade: o buraco é muito mais embaixo.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A brisa

É tempo de inverter o sentido da brisa que sopra para o oeste e mudar, de fato, caminhos que não mais estão de acordo. Cata ventos são desnecessários, pois a energia sai apenas dos braços, músculos cansados de levar consigo o mundo todo, como em momentos de noite em que o lixo some das ruas engarrafadas de alvoroço, e é carregado pelo lixeiro, sem que saibamos como o trabalho é feito. Não estou afirmando que devemos parar de carregar o mundo, não é isso. Quero apenas que o peso seja dividido por todos, sem nenhum benefício para nenhuma das partes, envolvidas nessa grande sopa de verdades incontestáveis. É tempo, enfim, de guiar o sopro da história em sentido oposto, penetrando em poros invisíveis que escancaram a boca em tempos de crise.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

As árvores e seus diálogos

Quando eu era pequeno, meu pai me levava a um bosque que ficava perto da cidade onde passei a meninice, para mostrar-me as árvores e seus diálogos. Ele dizia que elas conversavam entre si, às vezes até brigavam, mas sempre deixavam de lado as diferenças. Lembro-me que as vozes se encontravam de forma sincronizada e fácil, sem segredos nem contradições, como a definir conceitos. Eu, vestido de inocência, arregalando os olhos para o imaginário de um mundo criado às pressas, entrava em meio à conversa e dialogava, argumentando, elevando a voz para a inexplicável postura que assumiam perante a minha pouca argumentação. Mas elas eram mais espertas, mais vividas. Com a voz fina, sempre diziam coisas que me distorciam a face, e me faziam repensar o mundo, colocá-lo do avesso. Quando eu era pequeno, havia um mundo que me foi tirado, sem nenhum consentimento de minha parte, fazendo com que aquele menino quieto, arredio e feio, virasse homem, casto no que tange às falas, embora próspero na eterna prática de canalizar a raiva em manifesto, que desliza em brisa leve e vai seguindo pelos tempos - recuando em passos breves, por pura precaução - até chegar à liberdade e depois ultrapassá-la, tirando-a do reduto discursivo das ideias.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O grito

Ressuscitada seja a boca,
o grito,
que estoura em eco megafônico
na janela,
junto ao vento
e que traz, consigo, o fogo:
a revolta.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

formigas

Antes de recorrer aos sonhos, gostaria de dizer que estou triste devido à dura vida das formigas. O dia todo trabalhando sem ao menos um tempinho pra descansar as costas magras, fumar um cigarro de sei lá o que, ficar pensando em loteria como qualquer um. Compara-se o seu pouco talento com o da cigarra, a artista. Essa sim sabe o que é bom da vida e leva consigo o espírito exemplar de fanfarrona. Não liga para as cantigas bestas cantadas nas escolas e continua sua música, a esperta, como se estivesse em um momento perene de gozo. Observando essas tolinhas formigas que povoam o quintal da casa grande, e que agora vão andando como se seguissem um caminho insólito, condenadas pela natureza ao exercício contínuo da fila, presas na sua condição de inseto e nas limitações do seu único dia de vida, sinto vontade de gritar-lhes aos ouvidos: “Levanta-te”. A cigarra tentou, eu sei, mas não deu conta. Também, chegou folgada, cantarolante, altiva, deixando escorrer pelas laringes suas certezas ausentadas do tempo e do espaço, achando que formiga é bicho fácil. Pois não é, e digo mais: a formiga é a personificação do homem que trabalha, e fica quieto no seu canto, descansando, sem ter tempo pra sonhar. O que me alegra é ter a certeza de que, da mesma forma que caminham à labuta, juntinhas, homogêneas, rebelar-se-ão contra um sentido que lhes empoeirou as idéias, como em uma insurreição popular.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A morte do tempo

Embora não se veja mais o mar em movimento, há tempos, venho pensando em transfigurar o mundo em pedaços de papel. Talvez, pregada a sua imagem no branco da folha, mesmo sendo o seu formato irregular e simples, eu possa transformá-lo em versos, a fim de deixá-lo mais aberto aos entendimentos que dele fazem os homens, falsear os dogmas, apontar variantes. Não compreendo bem as formas de se chegar a um ponto, mas penso nelas todas as noites, recostado em sonhos que, em contato com o travesseiro, fazem do sono o recanto imaginário da morte, guiada pelos olhos e segredada à consciência. É como se compreendêssemos as coisas à luz de um único sol, de uma única estação. Como se andássemos em um mesmo ônibus e fôssemos obrigados a comer num mesmo restaurante, a mesma comida, e pagássemos o mesmo preço. Mas assim não seria melhor? Creio que sim, mas observações quase que enfadonhas me dizem que devemos ter cautela e os olhos voltados para todos os lados, para todas as vozes – todas as expressões que fazem do homem animal racional são merecedoras da mais austera observação. O tempo já não é mais referência. Como o dorso da História repete tudo o que já disse antes, da mesma forma, trocando apenas algumas palavras para disfarçar a repetição, como quando escrevemos um texto e tiramos os excessos de “quês”. Vomita as suas hipocrisias ressuscitadas nas figuras cintilantes de homens simples, que apareceram na hora certa, os sortudos, apagando a voz que vem de baixo. É um oportunista, que leva a fama de bom mas não passa de abstração, de engodo. Penso em asfixiá-lo numa sacola transparente de plástico e ver o sangue escorrendo da boca em forma de astros e de anedotas. Quero cortar-lhe as tripas, e vê-lo gemer em gritos engarrafados pela dor invisível do corte, esquartejando-o de forma que suas partes já não compreendam o todo – cabeça de um lado, rabo do outro – para que não seja mais o embasamento dos vários. E depois disso, dirigir os passos em direção à sala, acabrunhado, entregando-me às lamúrias de alguém instável, que muito gasta no valor da fala e ausenta-se, aperreia-se, destoa-se no emaranhado de vozes que saem descabidas, sem sentido. Para podermos transformar o mundo em versos que nos guiam aos caminhos aromados pela essência torpe que nos faz humanos, matemos, de uma vez por todas, sem demora, esse que nos engana com a sua História, erigida de forma única e pouca, petrificada nos desejos dos partidos e da ciência.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Visita

Veio de repente, o andar trôpego, como se seguisse uma linha destoada do tempo, acompanhando as curvas que se colocavam no caminho de forma consciente e que mostravam certo questionamento à normalidade das coisas. Não disse nada, apenas apoiou-se em meus braços que mal suportavam o peso das responsabilidades. Deitou-se no sofá da sala e soltou um bocejo que recebi como um insulto e, ao mesmo, uma forma de me fazer relembrar algo que já escurecera, que eu já havia jogado num canto apagado da memória. Murmurou em tom grave algumas palavras preguiçosas, fazendo com que a disposição em ouvi-las voltasse de uma longa viagem ao exterior depois de longos anos de espera, e batesse na porta num dia de chuva. Eram as mesmas palavras, que eu acreditava já estarem mortas, embalsamadas de um aroma que me tornara indiferente ao que havia passado. Percebi que estava mais encorpado e que seus cabelos estavam mais secos e menos cuidados, danados pelos atropelos do mundo. Mas aquelas palavras me fizeram lembrar do seu antigo rosto, que parecia uma representação heróica de algum personagem cujos segredos eram apenas imperfeições dissolvidas na tentativa de sempre se manter altivo. Quando me sentei no sofá, fazendo sala aos seus movimentos e métodos de conquista, vi seus olhos voltados para o vazio de um mundo imaginário e desprovido de forma, como se buscassem uma explicação desnecessária ao momento e canalizassem um ponto fosco em meio a cores variadas. Depois de ultrapassar as barreiras do medo, passei a ponta dos dedos nos ombros comprimidos – talvez por uma distante sensação de culpa – e tateei os cabelos que se estendiam até a curva bem definida do rosto. Como resposta, desferiu um abraço que desestruturou algumas certezas que eu havia retomado há meses, num golpe que não recebi como violento porque o esperava, sempre o estive esperando. Veio em passos bêbados titubeando ao som de um eterno samba triste, e depois foi embora, me deixando a esmo e me colocando na eterna prática de desnudar o branco do papel.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Desabafo em cor salubre

Ela entrou séria, os passos rápidos e em harmonia com o tamanho. O rosto, desalinhado e murcho, sinalizava o seu estado de ira. Lançou um olhar vigilante em volta, como quem procura o indesejável, a fim de evitá-lo. Encostou os braços no balcão de forma que seu corpo pudesse descansar um pouco. Voltou-se para a gerente:
Ele me disse ontem que eu não estou sabendo cuidar do meu filho direito. Ficou falando que tenho tanto tempo para nada, que era bom eu trabalhar logo, procurar algo para me ocupar e não encher o saco. Isso é coisa que se diga? Você acredita nisso, Rê? Quero ver quando me pedir para lavar as roupas dele, fazer a comidinha daquele grosso, quero ver.
          As palavras que a mulher escolheu para dar forma ao seu desabafo causaram um certo desconforto à gerente, que pensou haver muita gente na loja, e que alguém poderia ouvir e julgar de forma errada, como fazem as pessoas, a maioria delas. Tentou se esquivar daquele olhar esperançoso e bruto, como quem não quer saber e se abstém, deslizando o corpo esguio em meio à necessidade de escolher um lado. Frente ao olhar fixo, manteve a postura e ficou como uma estátua indiferente aos namoros que fazem da praça um lugar meio mágico, meio triste. E disse, sem pestanejar:
Calma, ele deve estar cansado, e estressado com a questão do advogado.
Calma? Já tive muita calma até agora, não tenho mais que suportar aqueles insultos só por causa dos problemas que ele arruma por aí. Sempre vem com as desculpas de sempre, que está difícil, que é muita pressão e que eu tenho que ser paciente. Não estou interessada em ganhar o troféu da paciência. Vou ter uma conversinha como ele hoje à noite, você vai ver, e vou arrumar um emprego, assim como ele quer, só para não viver mais presa tendo que escutar calada os latidos de um cachorrinho cego que mal sabe cuidar direito de si mesmo.
Os gestos protagonizados pelas mãos em movimento davam à fala da mulher um ar de simplicidade escondida em roupas caras. Subiam e desciam, acompanhando aquele choro em sua forma mais coerente, mais concreta, de forma que o repentino aparecimento do autor do insulto não causaria nenhum desconforto ao espetáculo em frente ao balcão.
           A gerente não sabia o que dizer. Compreendia tudo, como das outras vezes em que teve que segurar a barra, ser apoio dos patrões que pareciam se encontrar num estado de desorientação perene, mas as palavras ficaram presas na garganta, e não disse nada, não correspondeu ao desespero refletido nos olhos arregalados e vermelhos da mulher, sua patroa. Pensou que não tinha que aguentar aquilo tudo, durante tanto tempo. Queria sair daquele emprego em que se afixara nos últimos sete anos, dentro do qual criou raízes e acabou se transformando no próprio trabalho, e se apartar de todo aquele alvoroçado ambiente de compras e mais compras, e salário baixo. Vi no seu rosto um murmúrio silenciado, talvez pela idéia falsa de que aquilo era parte do trabalho, e depois veio um sorriso, encobrir as palavras que subiram até os olhos, mas que não saíram, de forma alguma.
           Sentindo toda a sua fala transformada em letra morta, que se dissolve no tempo como a gordura ao se deparar com o detergente na hora de lavar as mãos, a patroa, atônita, mexeu em alguns papéis que estavam em cima do balcão – É! realmente não é fácil – disse, suspirando de forma que o vento adentrado no pulmão juntasse nos braços todos os destroços que aquela tempestade havia deixado, e levasse consigo as sobras de uma vida repleta de flores murchas, sugadas pela cede dos beija-flores, e saiu, atendendo ao chamado, sem rodeios, do marido.
Quantas vezes ela me disse isso e não resolveu nada? Parece até que eu sou o marido dela, para o qual ela solta as suas lamentações, e depois, na hora de dormir, na hora certa, deixa de falar o que deve ser dito, que está cansada, essa bruaca enfeitada – me disse a gerente, horas depois, quando tudo já havia passado.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O menino

Gosto de ver as coisas do meu jeito, entortá-las ao ponto de transformar a água em pinga doce. Gosto de dar nome às pedras que ficam à deriva, entregando-as ao prazer da existência viva. Gostaria também de colocar o mundo em uma gaveta do meu criado mudo, e usá-lo todas as vezes em que fosse aos bares, só para impressionar a menina de vestido amarelo, e depois colocá-lo de volta na gaveta, envolvendo-o na penumbra densa do quadrado. De que vale a verdade se nada diz sobre o que queremos ouvir, o que desejamos que seja? Hoje de manhã, um garotinho me parou na rua, pediu esmolas e eu neguei sem olhar direito para o seu rosto empoado e triste. Não porque o dinheiro me faltava, mas porque ele me veio num desses momentos apressados em que tudo a nossa volta não passa de sombras vertiginosas do mundo. “Não tenho agora”, eu disse, e saí em passos apressados, alongados pelo ímpeto competitivo de chegar primeiro. O alarido urbano estonteava a minha vaga lucidez e me sentei num banco próximo a uma cervejaria. Descansado depois de algumas horas, voltei, e o garoto não estava, sumiu em meio ao pranto coletivo do submundo, grito desesperado que ressoa em eco aos ouvidos mais atentos. Pensei que nunca mais o veria, nunca mais poderia corrigir o erro consequente de uma distração comum e tola. Fui embora meio triste, não tão triste como aquele que não teve o que pediu, nem de mim, nem de Deus – mas triste como um carneiro que é impedido de pensar sozinho, e que segue os outros, sem dizer palavra.

domingo, 28 de agosto de 2011

A fuga

Já não sentia os espinhos arranhando a pele, nem o medo das surpresas que aquele ambiente escuro e fechado pelas folhas causaria a qualquer pessoa. Apenas caminhava, deixando levar-se pela sagacidade limitada do instinto. As mãos estavam geladas, os braços doíam, e a dificuldade em respirar fazia com que o desejo de abrir os olhos fosse preocupação secundária. Avistou um toco encostado no aconchego de uma árvore e pressentiu, guiado pela esperança de continuar em vida, que a fuga estava prestes a encontrar o seu desfecho.
Sentou-se, a cabeça encostada no tronco, as mãos descansando no colo e a retomada do ar que saía e entrava, agitado. Pensou, por um momento, que ali seria o seu último descanso. As baforadas ficaram mais brandas e o desejo da morte soprava em seus ouvidos, chamando-o, como uma puta satisfeita no raro prazer do sexo que acenava, no leito impreciso da flora, para aquele que fora o autor de suas alegrias libidinosas. Abriu os olhos e avistou, com certa dificuldade, um amontoado de madeiras visivelmente modificadas pelas mãos de um homem.
Haveria alguém por perto que lhe pudesse doar abrigo? Seria a sua casa quente, com uma lareira no meio da sala e as crianças se preparando para dormir, tomando o leite esquentado pela mãe?
Não sabia ao certo se eram reais ou apenas imagens que os seus olhos criavam como uma forma de acalmar o seu momento de morte. Forçou as pernas para se levantar num movimento inútil, agarrou-se ao tronco e percebeu que as forças já haviam se despedido sem avisar. Soltou um gemido que mal passou pela traquéia, numa tentativa insólita de se animar, da mesma forma que fazia quando os dias tediosos cercavam o seu corpo naquela cela emporcalhada pela lambança dos ratos. Fechou novamente os olhos e vagou pelo passado.
Pensava no calor da praia, no sol veraneio que banhava a vida simples do seu antigo vilarejo no litoral. As mulheres lavando a roupa no domingo de manhã, às vezes, lhe causavam certo espanto. Sabiam de tudo e até teorizavam sobre algumas normas comportamentais. Os homens chegando de tardezinha à espera de sossego, os filhos, unidos pelo pudor da infância, moldando os castelos de areia com o cuidado de um artesão. À noite, numa única praça que faltava luz, o namoro às escondidas, guardado pelo sorriso perolado da lua.
Abrira mão daquilo tudo por uma bobagem, uma briga sem sentido que acabara em morte. Fora apenas um soco, assim como aqueles do tempo da escola, e tudo viera abaixo. O corpo negro despencava como se fosse pedra mole e logo o barulho das sirenes ressoavam aos ouvidos que mal acreditavam naquilo tudo. “Homicídio Doloso”, fora o que ouviu de um dos policiais. Seu rosto estava pálido e as pessoas lançavam injúrias em direção a ele, apontavam o dedo e berravam fazendo caras feias. Fora colocado, a empurrões e pontapés, dentro de um camburão velho e não se ouvira mais notícias suas. A mãe se mudara para o Norte, junto com um comerciante. O pai morrera e o irmão montara uma loja de materiais de pintura no interior de São Paulo, por meio da qual se mantinha vivo.
Fora preciso alguns anos para se acostumar ao presídio. Logo, fizera contatos, localizara alguns homens que se mostraram amigos e que estavam na mesma situação: sobrevivendo no mundo dos tortos, dos desalinhados, desprovidos de uma segunda chance.
Abriu novamente os olhos e viu algumas pontas de luz balançando e desarrumando a imagem embaçada do escuro. Seria Deus, juntando as partículas iluminadas do seu Ser e esperando que a hora chegasse, e assim carregar nos ombros aquele corpo cansado e arranhado pelos arrependimentos e também pelos espinhos? As pupilas insistiam em cobrir os olhos e a resistência em se manter acordado parecia ter sumido completamente, até que tudo ficou escuro.
Quando acordou, estava em uma cama coberta de um branco que nunca havia visto antes. Pensou, sem poder se mover um centímetro sequer, que – talvez – os seus pecados haviam sido, enfim, perdoados.

domingo, 7 de agosto de 2011

A chuva

Embora tivesse cessado a chuva, o asfalto ainda estava molhado e as pessoas se mantinham quietas no silêncio caseiro, guardado pelas paredes de suas casas populares. Sozinho, ele andava em passadas tensas, enquanto a imagem trazida pelas lembranças era refletida nos olhos meio perdidos.
Os cabelos acompanhando o vento, o colo moreno, as unhas feitas com o cuidado de artista. Havia um tempo em que não prestava tanta a atenção nos detalhes. Tinha na memória apenas a imagem do quarto, a cama vazia, e quando ela chegava cansada do trabalho, se olhavam e se abraçavam num ânimo que se confundia, ora com o amor, ora com o afeto.
Ela reclamava dos seus olhos distantes, da sua insegurança, da sua maneira desleixada de se vestir. Ele rebatia com discursos, mas não adiantava. Ambos sentiam que o muro entre os dois já fora construído e sua dureza ainda se mantinha intacta. Mesmo assim insistia, comprava presentes, acordava cedo e fazia, antes que ela acordasse, o café da manhã. Ela agradecia com um beijo tímido, um abraço amigo e desentendido do verdadeiro motivo daquele gesto. Segurando-a pela cintura, ainda tentava animá-la, deslizando os lábios pelo pescoço, da forma como ela sempre o elogiava. Mas o calor amante do abraço, aos poucos, ia se esvaindo, o corpo se contraía e as mãos escorregavam decepcionadas pelo quadril.
Era uma situação dentro da qual tinha se acomodado. A normalidade dos fatos começava a prendê-lo em casa, e passava o dia sentado na poltrona grande, no meio da sala. Os programas de TV vieram a ser a sua diversão diária. Não havia mais poesia no final do dia, nem as conversas que atravessavam o silêncio do quarto, e nem a vontade de se olharem no escuro, na hora de dormir.
Antes, achava que era culpa do tempo, do costume, da inevitabilidade dos amantes em se tornarem irmãos, do desejo que se despede anunciando a convivência como uma possível substituta. Mas naquela noite, pisando no asfalto úmido, pensou que a culpa era mesmo dele. Poderia ter prestado mais atenção naquele jeito silencioso de dizer as coisas, que era só dela. Poderia ter olhado mais a fundo, sem a orientação do orgulho, e ver o verdadeiro sentido daquela angústia manifestada em gestos. Haveria tempo de mudar as coisas? Pensou.
Num ímpeto, voltou-se para o gato sentado em uma esquina pouco iluminada. Sentiu que o gato queria lhe dizer algo, mas não podia, havia limitações. Compreendeu aquele olhar felino como queria, e começou a caminhar um pouco mais depressa. Entrou no prédio, pegou o elevador, chegou num apartamento que ficava quase no final do corredor, tocou a campainha.
Ela abriu a porta surpresa, sorriu um sorriso sem graça e se esforçou para que ele não olhasse para o interior do apartamento. Sem que quisesse, os seus olhos foram puxados pela curiosidade da saudade. Queria saber o que tinha mudado no apartamento durante o tempo em que a distância das palavras os mantiveram separados. Olhou disfarçadamente: havia outro. Ela pediu para que ele passasse mais tarde, ele consentiu com a cabeça, sem dizer uma palavra. Ela fechou a porta enquanto o acompanhava descendo as escadas. Sentindo o dia mais pesado, ele foi embora. Chegou em casa, abriu um álbum velho de fotografias e ficou olhando o passado como quem vê um filme, até que veio, de novo, a chuva, lavando o asfalto que mal havia secado.

domingo, 31 de julho de 2011

Quando estiver cansado...

...levante rápido da cama, sem arrumá-la, e vista-se com as suas roupas mais simples. Desça as escadas lentamente, como uma noiva na hora do casamento, e vá direto ao banheiro. Lá, procure um espelho, mesmo que seja pequeno, e olhe no fundo dos olhos da imagem que aparece, sem medo. Pergunte a ela sobre seus defeitos e sobre o que fizera na noite anterior. Provavelmente, ela irá repetir a mesma pergunta, como fazem os irmãos mais novos quando querem nos irritar com as suas safadezas.  Se ela não quiser lhe responder, não têm problema. Ignore tudo o que não lhe der nenhum tipo de respaldo. Depois de escovar os dentes, vá até a cozinha, onde encontrará toda a sua família tentando adivinhar o porquê de você ter bebido tanto. Não dê ouvidos àqueles que te colocam num julgo que não é o seu e resmungue qualquer coisa que lhe vier das idéias. Sente-se, cínico, na mesa como se nada tivesse acontecido e dispa-se. Seu pai, provavelmente vestido com a sua camisa de botão listrada e utilizando-se de sua voz forte e autoritária, dirá: “Coloque a camiseta, não é assim que deve se portar em uma refeição familiar”. Diga ao senhor dono da voz que você está cansado das roupas e se sentindo sufocado pelo calor por elas provocado. Ele ainda tentará convencê-lo com um discurso batido, o mesmo que percorrera todos os lares nobres da História, mas não ouça, assim como fizeram os comunas no início do século passado. Depois de comer, dirija-se para o carro, ligue-o, e vá até o rio mais próximo. Quando chegar, encoste o carro na beira, desça devagar e entre na água. Não se esqueça de focar-se apenas na curva do horizonte, em nada mais. Se chegar ao ponto em que a sua altura já não é suficiente para manter a cabeça do lado de fora, nade, o mais rápido que conseguir. Quando estiver bem longe da margem, a ponto de não distinguir exatamente a distância percorrida, deixe a água envolver todo o seu corpo e sinta-se como uma pedra em queda livre. Sentirá também o pulmão apertado. O peito irá doer um pouco e vai bater uma certa vontade de voltar. Mas não se preocupe, isso faz parte da transformação.  E quando a água invadir todo o interior de seu corpo, como um fluído alegre arrebentando as paredes feitas de marasmo e tédio, estará em um novo mundo: o mundo dos peixes.

domingo, 24 de julho de 2011

Lembrança

Olhando a cachoeira derramar nas pedras todas as suas perguntas infantis e ver que elas (as pedras) respondem silenciosamente como uma velha esposa desiludida. Vendo as nuvens anunciar a sua chegada, aos gritos, convidando todos os homens a entrarem quietos em suas casas feitas de palha.  Testemunhando os urubus – ah os urubus – que indicavam, naquela tarde triste, os cadáveres precisados do socorro dos animais comedores de carne. Observando os canários dançando sapecas, sob os cuidados das mães árvores, a sua dança desentendida das conjunturas do mundo animal e se comunicando, por meio de pios, com o joão-de-barro, único possuidor da tão sonhada casa própria. Olhando para a garça, exibida, desfilando no raso do rio a sua beleza lenta, orgulhosa por ter as mais belas pernas do pantanal. Havia também pescadores, longe, tarrafiando em seus barcos de pau o sustento dado aos pobres estomagozinhos pardos, que brincam todos os dias nos campinhos de terra dos vilarejos perdidos no mato. Olhando tudo isso, lembro-me, sentado na ponta de um velho pedaço de madeira, da tua imagem diminuindo de tamanho. Seus cabelos enrolados dançavam com o vento e você me deixava, mas uma vez, sem as tuas necessárias palavras de afeto.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

O labirinto e a rosa

           O mercado municipal estava cheio por causa do aniversário da cidade e o homem, sentado no banco do outro lado da rua, perambulava no interior de si mesmo, perdido no seu próprio labirinto – aquele que se constrói na medida em que lidamos com situações novas e que vai se complicando junto às experiências que fazem envelhecer.
 Procurava dentro de si, sem muita expectativa, alguma idéia sobre o que comprar para Laura, sua namorada há dois anos e meio.
“O que posso comprar com cinco reais?” – pensava.
Sentia-se como um poeta em processo de depravação criativa. As idéias desviavam-se dos seus movimentos como quem pode prevê-los, e ainda sorriam para ele fazendo fusquinha. “Por que é que temos de ser criativos no amor? Não basta o sermos no trabalho, com os amigos e com o público frente ao qual representamos todos os dias?” – perguntava para si mesmo numa tentativa frustrada de justificar a sua indiferença àquilo que concebia como “amor”.
– Olá, amigo, posso ajudá-lo – perguntava, de repente, outro homem, cujo espírito solidário refletia-se nos seus olhos castanho-escuros e cujas roupas brancas e largas indicavam algum pseudo-contato com um mundo sem muitos conflitos materiais.
– Não sei se pode.
– Por que não tenta?
– Não se preocupe, não é nada.
– Vejo que passava por um conflito aí dentro de sua cabeça, estava falando sozinho.
– Amigo, eu agradeço a sua preocupação, mas os conflitos que se passam na minha cabeça são problemas que preciso me livrar sem a ajuda de terceiros, portanto, peço que não se preocupe comigo e vá viver sua vida de santo em paz.
– Então tome essa rosa, talvez ajude. Encontrei-a numa roseira dentro do quintal de uma dessas casas de jardim, dentro das quais o mundo não parece tão complicado como esse que se apresenta, agora, na nossa frente – disse o homem, saindo devagar.
“Porque é que eu não pensei nisso antes? Uma rosa, tão simples” – refletia novamente o homem, encerrando o diálogo consigo mesmo.
Levantava-se de sobressalto e dirigia-se ansioso para o carro, segurando firme a rosa vermelha e indiferente à dor leve causada pelos espinhos. Pisava fundo no acelerador a ponto de sentir, embora calçando os velhos sapatos de camurça, a quentura do asfalto na sola dos pés. Corria aloprado pela cidade sem dar tanta importância ao alvoroço das buzinas. Passava os sinais vermelhos sem perceber até chegar, numa freada brusca, em frente a uma casa de portão verde-claro. Lá, avistava Laura usando seu vestido de cor singular, parecia de ferro chumbado, e pegava a rosa em cima do painel do carro.
– Olha o que eu trouxe – dissera, dirigindo-se a ela com a rosa em uma das mãos.
– Uma rosa – identificava a moça, parecendo não se surpreender muito.
– Para mostrar-lhe o quanto gosto de você.
– Parece que está meio murcha.
– Pode ter ficado assim por causa do sol, deixei-a em cima do painel do carro enquanto vinha para cá.
– Achei linda, obrigada.
Os dois se beijavam tímidos. O homem olhava para Laura e via que seus olhos estavam parcialmente encobertos pelas pupilas, como quem havia acordado há pouco tempo e tinha o pensamento longe, ainda no sonho interrompido pela necessidade de acordar.  Enlaçando-a pela cintura, acompanhava o andar lento da moça para dentro da casa. Via que Laura entrara no quarto com a rosa e, ao sair, não a segurava nas mãos. “Talvez tenha guardado no criado mudo”, pensava. Depois disso, preferira esvaziar a sua cabeça, deixando que o silêncio que pairava entre os dois, na hora do jantar, respondesse a todas as perguntas perdidas naquele estúpido labirinto, que acabara de tomar uma nova forma.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Telefone chiado, ligação perdida

Enquanto seus pais conversavam na sala, o menino correu por toda a casa, empolgado, e chegou ofegante para o irmão, deitado no quarto dos fundos.
– Eu não sei o que dizer, Edivaldo, não sei o que dizer.
– Diga o seu nome e que pegou o telefone com uma amiga dela.
– Não, Edivaldo, eu não consigo. O telefone está chamando e não sei o que vou falar primeiro. Eu não deveria ter ligado.
De susto, chega o pai que, mais irritado do que curioso, pergunta:
– O que é essa barulheira toda?
– Nada, pai, não é nada – diz Edivaldo.
– Não quero barulho, estou tentando conversar com a sua mãe. Tentem nos dar um pouco de sossego.
– Vai, pai, não é nada.
Bravo, o pai se afasta dos conversadores, colocando alívio no peito magro do menino, que resolveu tentar de novo a ligação.
Do outro lado da linha, uma voz feminina e pré-adolescente.
– Alô.
– Alô, peguei seu telefone com uma amiga sua, meu nome é Eduardo.
– Quê?
– Meu nome... Eduardo... Peguei seu telefone com a Mônica.                                
O telefone, já velho, chiava, e o menino, sem saber o que fazer, desligou-o.
– Caiu a ligação.
Com olhos desconfiados, o irmão mais velho o encarava. Fazia aquilo não porque desconfiava realmente – sabia que era mentira! – mas para penetrá-lo no fundo de sua culpa. Olhou-o dos pés à cabeça, analisando-o, e mostrando indignação perante a sua covardia. Já o menino, ao cair em si, pegou o telefone novamente, discou o número e esperou, sério, a mesma voz pré-adolescente – que não mais apareceu.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Do outro lado da rua


            Pereira Matos estava em frente à sua casa, desfrutando do seu tempo para refletir sobre a velhice. Sentado, lembrava-se de tudo que não deveria ter feito e não se arrependeu. Gostava de pensar que se não tivesse feito aquelas coisas – e foram muitas – não estaria ali, sem problemas maiores, levando a sua vida baseada no suprimento das necessidades. Da velha cadeira de fios brancos, olhava os meninos jogando bola, cheios de vida, do outro lado da rua, e lembrara da sua difícil juventude.
                – Olá senhor Matos, tudo bem? – disse, respeitosamente, uma menina de mais ou menos dezessete anos que passava por ali.
– Bem!
– Dona Tereza está?
– Não! Foi fazer unha.
– Eu queria acertar umas contas com ela, da loja de bijuterias.
– Pode passar depois?
– Sim, claro. Aproveito para marcar unha. A que horas posso passar?
– Oito, pode ser?
– Pode sim. Obrigada, senhor Matos, e boa tarde para o senhor.
– Boa Tarde.
            O velho baixou a cabeça, pigarreou, apanhou o cigarro no bolso e começou a fumar descansado. Enquanto a jovem caminhava, acompanhada pelos olhares e assovios de um grupo de rapazes que passava por ali, montados em suas motocicletas, um grito fino de menino se sobrepunha ao som dos motores das motos.
– Senhor Matos, cuidado!
E a bola bateu bem na cara de Pereira Matos, deixando-lhe numa situação extremamente constrangedora. Ao verem e ouvirem o velho levantar e lançar-lhes alguns ofensivos xingamentos, os meninos trataram de pegar a bola depressa, colocá-la em campo, e continuar com o jogo como se nada tivesse acontecido. Já o velho, nervoso, pegou a sua velha cadeira, virou as costas para a rua, e também para o mundo, e entrou em casa. Ligou a TV e sentou-se na poltrona de couro sintético, a fim de esperar o programa de domingo à tarde.

domingo, 19 de junho de 2011

Cerveja, cigarros e uma carta indesejada

            O garçom colocou a cerveja gelada dentro do recipiente, pegou o pequeno copo de vidro, o suspendeu até a boca da garrafa e derramou o líquido com cuidado. Com o outro copo, repetiu o gesto.
– Mais alguma coisa?
– Não, obrigado.
– Estarei logo ali no corredor. Se precisarem, podem me chamar.
– Está certo, qualquer coisa o chamaremos.
            Estavam sentados, um de frente para o outro, numa pequena mesa localizada a um canto pouco iluminado do estabelecimento. Havia um aglomerado de gente na frente do palco, onde estava acontecendo uma apresentação de música regional. As pessoas riam embriagadas, levantando os braços e acompanhando desordenadamente a cantoria.
– O pessoal está bem animado, não é mesmo?
– Sim, estou vendo. Parece um bando de ovelhinhas comemorando a limitada liberdade concedida pelo sistema.
– Pare de ser tão radical, Pedro, eles estão apenas se divertindo.
– Dizer a verdade não é ser radical. O que acontece é que encobrimos o mal para nos adaptarmos ao sistema, para que as pessoas gostem de nós e não nos critiquem. Eu não tenho medo de ser criticado, portanto, a verdade para mim tem que ser dita, mesmo que me custe a reputação.
– A sua reputação já está bem comprometida por conta desses comentários que você anda fazendo. Depois que você entrou para esse partido, fica falando esse monte de coisas que afastam as pessoas.
– Não é o partido que afasta as pessoas, mas a verdade.
– Como é difícil conversar com esse meu ursinho lindo!...
– Fale baixo, por favor.
– Baixo? Por quê? Está com vergonha de mim? Fique tranqüilo, as pessoas estão todas ocupadas curtindo a – como é que você diz mesmo? “Liberdade limitada”.
            Riram juntos. Tomaram cerveja de forma sincronizada. Pedro acendeu um cigarro após o longo gole. Soltou a fumaça devagar, olhando-a, como quem aprecia o movimento épico de uma dançarina de balé clássico.
– Eu adoro beber depois que saio do trabalho. Todos deveriam ter esse direito, sem exceção. Imagine se tivéssemos dinheiro para beber todos os dias?
– Ia ser engraçado.
                – Por que engraçado?
– Quando você fica bêbado, fica engraçado.
– Engraçado? Como assim?
– Sei lá! Fica com cara de sono e falando meio lento. Apesar disso, fala sem parar. Aliás, quando você está bêbado, você não fala, dá palestra, e com a voz molinha, molinha. Eu acho engraçado, mas gosto.
– Quer dizer então que você gosta da minha voz de bêbado?
– Não da sua voz de bêbado, mas de ouvir você falar bastante. Você fica o dia todo quieto, fala muito pouco. Quando fala bastante eu gosto.
– Então, a partir de agora, eu vou falar bastante. Conversarei sobre várias coisas com o meu amor.
            Tocaram-se discretamente. Pedro acariciou o rosto à sua frente, que se mostrava belo e calmo. Passou a mão, devagar, nos cabelos louros e ressecados, deslizando os dedos nos olhos esverdeados, que se fecharam ao sentir do toque. Sentiu a face esquerda um pouco áspera e viu que havia uma marca roxa no pescoço.
– O que foi isso?
– Acidente de trabalho.
            Pedro, já começando a ficar tonto, baixou a cabeça como quem começa a refletir. Lançou seu olhar vago para uma pessoa qualquer que passava perto da mesa. Passou a mão na sua barba mal feita e limpou seus olhos, que começavam a ficar encharcados e vermelhos. Bebeu mais um gole de cerveja e continuou em silêncio.
– Não se preocupe, meu amor, é assim mesmo. Essas coisas acontecem com todos que estão nesse ramo. Se não fosse o meu trabalho, não estaríamos aqui tomando essa cerveja, não é mesmo?
– Prometo que, assim que eu conseguir um emprego mais rentável, isso tudo vai acabar.
– Pedro, meu amor, não se preocupe com isso. Você é um anjo e nós nos amamos, é isso que importa. Não fique tão preocupado comigo, você já tem as suas preocupações.
            Mais uma vez, Pedro enxugou as lágrimas que começaram a escorrer pelo seu rosto. Levantou-se rapidamente, de forma que ninguém percebesse o seu estado. No banheiro, lavou o rosto com uma grande quantidade de água. Olhou para o espelho e viu que seus olhos ainda estavam inchados. Esperou mais um pouco e voltou para a mesa que, para o espanto do rapaz, estava vazia.
            Olhou para todos os cantos do estabelecimento. Não vendo ninguém, voltou à mesa para tentar encontrar algum sinal de vida da sua companhia. Sentou-se devagar e esperou um pouco.
– O senhor que estava na mesa pediu para que eu lhe entregasse esse papel – disse o garçom meio embaraçado.
– Ele foi embora?
– Sim, saiu às pressas depois de receber um telefonema.
            Com as mãos trêmulas, abriu o papel devagar. Era uma pequena folha branca manchada de restos de cerveja, na qual estava escrita, de caneta vermelha, uma pequena mensagem.
“Tive que sair às pressas. Recebi um telefonema de um cliente importante que precisava do meu trabalho. Peço-lhe desculpas pelo transtorno. Deixei a cerveja que tomamos paga e um pouquinho de dinheiro embaixo do porta-guardanapos. Se quiser, não precisa me ligar de volta, pois compreendo como deve estar sendo difícil esta situação para você. Só quero que você não se esqueça que é a pessoa mais linda e mais especial que já conheci. Te amo muito.
                                                                                                                      M.A”
            Dobrou o papel que acabara de ler e colocou-o no bolso.
– Obrigado, senhor. Pode me pegar mais uma cerveja?
– Pois não, mais alguma coisa?
– É só.
            Enquanto esperava a cerveja, pegou o único cigarro que se encontrava no pacote. Com o isqueiro, tentou, sem sucesso, acendê-lo. Na segunda tentativa, conseguiu acender apenas uma parte da ponta, o que foi suficiente para que Pedro continuasse a admirar a fumaça saindo, leve e triste, dançando com o vento. como se fosse uma bailarina entorpecida.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Mayuca

O sol estava bem em cima de sua cabeça, esquentando ainda mais seus finos e secos cabelos. Sua pele ficava, a cada minuto, cada vez mais avermelhada. Mas o bugre ainda estava ali, sentado no galho seco, esperando seu companheiro de caça.
            Com a mão direita, pegou uma pedra em forma de disco e a jogou no rio. A pedra pingou três vezes e afundou, fazendo com que o índio, já impaciente, descesse do galho com raiva.
Mayuca está perdendo a prática, heim! Será que meu velho companheiro, o mais ágil da tribo, está ficando com os seus reflexos mais lentos por causa da idade avançada?
O que Botuiaiá fazia que demorou tanto pra chegar? A luz que ilumina o mundo já está no meio do céu, já passou da hora de irmos caçar. Podemos até perder metade do dia por causa de Botuiáiá.
Desculpe, Mayuca! Tive um desentendimento caseiro. Mandira está me dando muito trabalho, principalmente depois que os meninos chegaram do seu ventre. Se eu soubesse que ia ser assim, tinha ficado na festa do seu primo em vez de pedir a mão dela em casamento. Lembra como foi a festa? Nunca mais fiquei tão bêbado como naquele dia!
Bons tempos, mas agora é hora de começarmos a correr atrás da nossa comida da semana e adiarmos o nosso papo furado, pois estamos atrasados. Pegue essa cuia grande que eu trouxe, e a rede de pegar peixe. Vamos torcer para que o Grande Rio esteja generoso e nos dê muita comida fresca.
Você é quem manda, companheiro. Só não quero que fique bravo comigo.
            Os dois caçadores começaram a caminhar nas margens do Grande Rio. Eram amigos desde os ensinamentos primários e se conheceram em uma briga cujos envolvidos eram os próprios. Gostavam de conversar sobre a adolescência e a juventude. Lembravam, sempre que se viam, das bebedeiras e das travessuras com as mulheres da tribo.
Lembra de Jubira, aquela velha que você se engraçou? Te gozamos durante o ano inteiro.
Você é muito preconceituoso. Ela não era velha e me ensinou várias coisas sobre como fazer pra deixar índia doidinha.
Me lembro que você comia bosta de tatu por causa dela! Ficou babando ovo durante um bom tempo.
Você diz isso porque não foi contigo, seu índio filho da puta.
            No final do dia, quando a luz que ilumina o mundo estava terminando o seu ciclo, lançando apenas algumas luzes alaranjadas e fracas naquela parte da Terra, os índios caminhavam de volta pra casa, sorrindo satisfeitos com suas caças, que eram carregadas sobre seus ombros pardos e musculosos. A água do Grande Rio passava por cima dos seus pés de unhas cascudas. Os bugres andavam em passos vagarosos e cansados, de tanto sustentar seus grandes corpos e cargas. Olhando para o rio, Mayuca perguntou ao seu amigo: 
Você prestou atenção ao que disse o mestre Sussumira, ontem à noite?
Mais ou menos – respondeu o amigo – eu estava ainda tonto por causa do tatu e da água de cana que tomamos naquele dia à tarde.
Pois então! Mestre Sussumira veio com uma história de que seremos visitados por uma gente diferente, montadas em canoas gigantes nas quais estará escrita, bem na lateral, a palavra “desenvolvimento”, palavra essa que o velho não sabia decifrar. Segundo ele, essas pessoas têm a pele cor de castanha de coco, e vêm para acabar com a nossa tribo e com todas as tribos vizinhas. Depois disso, eles irão acabar até com Tupã e toda a sua criação, trazendo a divindade deles. Falou ainda que seremos escravos desse povo. Não sei se ele estava falando sério. Tem gente que fala que algumas dessas pessoas foram vistas e até já são amigas de alguns dos nossos.
            Botuiáiá lançou uma longa e alta risada. Engasgou, de tanto rir. Virou para o amigo seu rosto zombeteiro e disse:
Ninguém acredita mais no velho! Tem gente falando que ele está ficando é doido, de tanto ficar conversando com o Grande Rio. Se eu fosse você, parava com esse negócio de ficar tentando adivinhar o que vai acontecer no próximo ciclo da vida e começava a cuidar de suas filhas, que já estão grandinhas e caindo nas graças dos índios mais jovens.
Não sei, não! Acho que é muita arrogância nossa achar que somos os únicos por aqui.
Você anda dando muita atenção pra essas coisas de religião. Eu não vou falar mais nada, e deixar você com sua doidice. Se suas filhas começarem a agir iguais às índias da noite, não venha dizer que eu não avisei.
            Depois que os dois índios chegaram na tribo, Mayuca se despediu do amigo. Andou algumas centenas de metros até chegar em sua pequena oca. Aproximando-se da porta de entrada, parou. Olhou em volta, para todos aqueles índios cuidando de suas vidas. Viu que havia algumas crianças brincando perto do caldeirão. Ouviu as vozes das mulheres que o esperavam felizes, e preferiu, naquele momento, não pensar mais no ciclo da vida que, no dia seguinte, seria substituído por um novo jeito de se ver o mundo.